Crônica: O primeiro beijo
18:09Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.
Oi meninas, trouxe pra vocês essa crônica de Clarice Lispector que eu adorei, como grande parte dos textos dela. Clarice Lispector era judia e nasceu na Ucrânia, mas veio para o Brasil com apenas 2 meses, fugindo da guerra civil russa e da perseguição aos judeus. Sua primeira casa aqui foi em Maceió, mas mudou-se depois de pouco tempo para Recife, a mais importante cidade do nordeste na época. Com quinze anos mudou-se novamente para o Rio de Janeiro, após a morte da mãe onde terminou os estudos e iniciou a faculdade de Direito, mas desistiu e segui o ramo da literatura. Teve dois filhos e morreu em 1977, um dia antes de seu 57º aniversário.
Espero que gostem da autora, que eu amo e me digam autores que gostariam de ver suas crônicas aqui.
7 comentários
Clarice Lispector é uma diva mesmo!!!
ResponderExcluirJá havia lido essa crônica, gosto bastante! ^^
Beijos
Diário Ciumento
É sim, eu me apaixonei pelos textos dela. Essa eu descobri por acaso e amei, como tudo que ela escreveu.
ExcluirGostei mesmo :)
ResponderExcluiromundocomoda.blogspot.pt
Na verdade o que gosto de ver é o interesse de blogueiras pela leitura!Adoro ver...
ResponderExcluirLiteratura,arte pra mim sempre foram hobbys desde pequena,então quando vejo pessoas mais jovens que eu dizendo que detestam ler,fico tão triste...mas quando vejo o inverso é uma sensação de bem-estar tão grande que me sinto nas nuvens!
Parabéns Luiza,eu adoro as obras de Clarice Lispector*
http://ondeacinderelaperdeuoscarpin.blogspot.com.br/2012/06/sorteio-oleo-fortalecedor-de-unhas.html
Então somos duas! Eu leio desde que me entendo por gente, aprendi a ler antes mesmo de ir para a escola e meus pais dizem que eu sou proibida de chegar perto de uma biblioteca senão o mundo acaba e eu não saio de lá! Obrigada, tambem adoro as obras dela, o jeito que ela escreve como uma velha amiga, mas sem perder a classe me encanta. Seja bem vinda (:
ExcluirQue texto lindo!! Clarice é demais, seus textos são incríveis sempre!!
ResponderExcluirBeijos,B
http://biiamuller.blogspot.com.br/
Concordo! Logo, logo tem mais texto dela por aqui.
ExcluirIaê, o que achou da postagem? Vem comentar!